segunda-feira, 23 de julho de 2012

O Diabo em figura de gente

  Relembrar as tramas de Gilberto Braga é um deleite para os apaixonados por novelas. Mas como meu ofício é escrever – primeiro como estudante de comunicação social, depois como aspirante a roteirista de TV -, é através do teclado do not-book que consigo expandir, soltar as ideias, não me furtando a escrever o quê mais gosto, que são as telenovelas. E, hoje, abordarei a polêmica e ousada “Corpo a Corpo” (1984), uma das poucas novelas lembradas da teledramaturgia brasileira.
  No início da história, Teresa (Glória Menezes) foi-nos apresentada como uma mulher dotada de um excelente caráter. Uma enfermeira bonita e que evidenciava uma notável inteligência. Viúva, vivia com a filha, Heloísa (Isabela Garcia), uma jovem de 16 anos, com quem tem uma relação de grande afeto que não a leva a preocupar-se com um segundo casamento.




  Acaba, contudo, por ir trabalhar para a mansão de Alfredo Fraga Dantas (Hugo Carvana), como enfermeira, quando o filho do magnata, Cláudio (Marcos Paulo) se debate com um problema de saúde. Com o empresário carioca, cria, também, uma relação que ultrapassa as barreiras do profissionalismo.
  Apenas a jovem estudante de jornalismo Bia (Malu Mader), a filha caçula de Alfredo, percebe que a enfermeira não é tão doce quanto aparenta.
  Na verdade, Teresa esconde um segredo do passado. Não foi em vão que ela aceitou a trabalhar para a família Fraga Dantas. Afinal, essa poderosa família possui um grande império no ramo de construção civil, no qual trabalha o simpático Omar Pelegrini (Antônio Fagundes), o homem que Teresa amou e não foi correspondida com o mesmo sentimento. Por não se conformar por ter sido rejeitada e preterida por uma mulher mais nova, Teresa desenvolve um ódio intenso pelo engenheiro da Fraga Dantas S.A. É ela quem cria o Diabo (Flávio Galvão em uma atuação magistral), para agir contra o casal Osmar e Eloá (Débora Duarte). Porém, acaba por perceber-se que não pode mandar no coração. Na verdade, o amor que viveu com Osmar pertence a um passado. Agora, a enfermeira tem de investir na relação que ainda pode viver com o velho Alfredo.


  Desde o começo da novela, o Diabo foi uma figura central da história que ao longo da trama, aparentava ser um homem normal, sem exibir qualquer tipo de misticismo.
  Flávio Galvão, o ator que deu vida ao misterioso personagem, defendeu o seu “Diabo” com “unhas e dentes”: “Ele nunca disse que era o Diabo, são os outros que o afirmam. A única coisa que ele faz é propor pactos.”
  Mas afinal quem era Raul? Um homem maléfico criado por Teresa para infernizar a vida de Eloá ou um homem que aprendeu bem a lição e a usar a maldade em proveito próprio? Essa foi a pergunta que ficou sem resposta, pois, mesmo após a morte, a figura do Diabo surge para as personagens com quem mais privou na história.

  Acredito que o autor foi muito feliz na escolha do título da novela. Passa-me a impressão de luta e dá uma ideia geral da trama. Luta entre pessoas que se amam, numa tentativa de permanecerem juntas. Luta entre líderes e liderados, num momento tão conturbado como o que estamos vivendo. Luta entre gerações novas, mais abertas, contra gerações mais conservadoras. Em destaque, está a história de Eloá Pelegrini, uma mulher envolvente e ambiciosa, sempre em busca de projeção social e profissional. Para tal, ela se empenha para se destacar na empresa de engenharia onde ela e o marido, Osmar, trabalham. Osmar é um homem sem grandes ambições, casado com Eloá há 16 anos, com quem teve Ronaldo (Selton Mello). O casal protagonista passam por situações devastadoras, chegando até ao divórcio. No final, vence o amor, quando o casal se reconciliam e vivem felizes para sempre.

  Quem brilhou de verdade em “Corpo a Corpo” foi a atriz Joana Fomm na pele da pérfida e preconceituosa Lúcia Gouveia.  Nas ruas, a atriz chegou a ser insultada em público: “Lúcia, mulher falsa, adúltera, manipuladora, tirânica e vingativa...” é daquelas personagens que, na vida real, ninguém quer ter por perto.

  Além de Eloá e Osmar, outras casais merecem destaque. Por exemplo, Bia e Rafael (o saudoso Lauro Corona). No início da história, ela namora Zeca (Caíque Ferreira), e ele é noivo de Ângela (Andréa Beltrão). Ao se conhecerem no curso de Datilografia, os dois se apaixonam, mas, por serem comprometidos, não se declaram. Rafael nasceu no Sul e veio para o Rio de Janeiro com a mãe, Guiomar (Eloísa Mafalda), e a noiva, depois que ela perdeu o pai em uma trágica enchente. Bia chega a marcar o casamento com Zeca, mas desiste da união quando Rafael declara que é apaixonado por ela e não aguentaria vê-la com outro homem.

  O romance inter-racial entre Cláudio e a arquiteta Sônia Rangel (Zezé Mota) merece destaque. Apaixonados tremendamente um pelo outro, o casal vive um romance conturbado pelo preconceito racial: ele é branco e de família tradicional, e ela, negra e de família simplória. A relação dos dois não é aceita por Alfredo, pai de Cláudio. Em depoimento ao documentário “A negação no Brasil” a atriz Zezé Mota, disse ter sido hostilizada e agredida verbalmente nas ruas por inúmeras mulheres que não aceitavam o relacionamento de sua personagem com um homem branco, jovem e rico.


  “Corpo a Corpo” marcou a estreia de três futuras grandes atrizes na TV Globo: Lilia Cabral (Margarida), Luiza Tomé (Alice) e Andréa Beltrão (Ângela). Na vinheta de abertura, elas eram creditadas, nessa mesma ordem, na seção “apresentando”.

  Mas, ao final da trama, Cláudio e Sônia se casam numa linda cerimônia na mansão da família Fraga Dantas. Brancos, negros, ricos e pobres, se encontraram para o desfecho da novela, começando assim, uma nova era em clima de harmonia e solidariedade.
  Os últimos capítulos foram emocionantes. Depois de terem cumprido pena por crimes que nunca chegaram a ser comprovados, Raul e Teresa voltam a se encontrar para um acerto de contas final. Porem, Teresa mostra-se arrependida e disposta a mudar deixando de lado todo o ódio e ressentimentos do passado. Raul acaba por morrer, quando deflagra um inexplicável incêndio em sua casa que sucumbe, também, Lúcia e o seu amante Amauri (Stênio Garcia), que era o verdadeiro pai de Alice (Luiza Tomé), mas não tinha contato com ela porque a menina ficou com Lúcia.
  Ultrapassada todas as crises e tormentos, Teresa, Eloá, Bia e Sônia, permanecem felizes e de bem com a vida ao lado dos seus respectivos amores: Alfredo, Osmar, Rafael e Cláudio.

Sempre sincero em suas entrevistas, Gilberto Braga relembrou como gostou de escrever “Corpo a Corpo”. “- A novela foi bem, e eu sempre pensei: ‘Por que falam de ‘Dancin’ Days’ e ‘Água Viva’ quando citam os meus sucessos e não falam de ‘Corpo a Corpo’?’. Era uma novela extremamente bem feita, com uma trama bem armada... Até hoje, é muito elogiada por escritores. Sempre encontro algum escritor de novela que elogia ‘Corpo a Corpo’. Talvez o público não se lembre tanto da novela porque não tinha como protagonista uma estrela tradicional, como Sônia Braga em ‘Dancin’ Days’.”, declarou o novelista.

Por Vinícius Sylvestre

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